quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

Enterramentos e Desenterramentos (parte I)

A Assembleia Municipal de Espinho (AME) finalmente reuniu extraordinariamente para debater a questão do enterramento de linha férrea em Espinho, depois de este mesmo órgão não ter cumprido a deliberação aprovada pela maioria dos seus membros (reunião 7 Julho 2005), de realizar uma reunião extraordinária ainda durante o anterior mandato, com a documentação e respectivos estudos, numa óbvia desresponsabilização e auto-enfraquecimento político deste órgão, pois se a própria AME não cumpre com as suas decisões, como espera que a Câmara, e/ou outros órgãos e organismos respeitem e acatem as suas recomendações?!

Instada várias vezes para a realização da referida reunião extraordinária, inclusive por mim próprio numa intervenção no período do público, a actual Presidente da AME exprimiu a sua vontade de a realizar, confidenciando até a sua vontade de realizar uma sessão pública de debate aberta à participação dos cidadãos. Mas tivessem sido apenas palavras de circunstância, ou não conseguindo fazer valer politicamente a sua vontade, viu-se ultrapassada pela manobra de diversão do PSD, tendo sido obrigada a convocar tal reunião.

A manobra não me causou grande entusiasmo por não atribuir à actual Presidente a oportunidade de falhar ou de provar o seu comprometimento com a deliberação vinda do mandato anterior, e com a vontade que ela própria expressou; e por não acautelar que os requisitos aprovados anteriormente fossem satisfeitos: a disponibilização da documentação e dos estudos, e a presença dos responsáveis da REFER e pelos pareceres, como foi requerido à Mesa pela então vogal Maria Goreti (reunião 12 Julho 2005).

Mais do que discutir a questão do enterramento, esta reunião serviu para um cerrar fileiras na arena política, digladiando-se as forças em combate, tentando cada uma das partes chamar a si o (falso) papel de defensor-mor das preocupações dos cidadãos. O debate numa lógica global de desenvolvimento do concelho nunca teve lugar. As estratégias, as repercussões e transformações, as formas de informação e esclarecimento dos cidadãos, entre outros aspectos, não foram tidas nem achadas.

Em suma, o resultado final traduziu-se no esfrangalhamento total da bancada da ‘coligação’, mais sentido no PSD, pela óbvia gincana que foi percorrendo ao longo do tempo, na coerência da CDU, que tem sido a força que sempre defendeu o prolongamento do enterramento, e na coerência do PS na defesa intransigente do seu timoneiro, mais do que na defesa dos verdadeiros interesses do Concelho, não interessando se é bom ou mau, o que interessa é a manutenção e reprodução do poder.

O sr. Presidente, esse, esteve igual a si próprio, no seu melhor estilo de desmesurado populismo, a fazer de conta que explicava muito, explicando muito pouco, conseguindo, no entanto, ‘esclarecer’ e/ou ‘convencer’ os mais incautos. O inacreditável, ou não, é que se tenham encontrado entre os incautos muitos dos elementos do próprio PSD!

[A facilidade com que o PSD se deu por derrotado foi por demais atroz. Está o PSD assim tão fraco? Ou será que faz sentido perguntar se terá sido a forma encontrada pelo PSD de enterrar o enterramento?]

Sobram, contudo, alguns aspectos reveladores que importa combater e/ou desmistificar.

Importa desmistificar a ideia de que o enterramento apenas afecta negativamente a população da Marinha, e que a defesa do prolongamento é uma ideia ‘descabida’ dos habitantes desta parte da cidade. Puro engano. Mais do que um problema da população da Marinha, este é um problema de todo o Concelho. O actual projecto não só não serve os interesses da Marinha, como não serve os interesses a Norte, e não serve os interesses do Concelho de uma forma geral. Entendido no quadro de uma intervenção abrangente e ambiciosa, de longo prazo, e não apenas da execução de uma obra isolada, este projecto não serve uma estratégia global de contribuir para a unificação e coesão interna da cidade, e da consolidação de uma nova centralidade urbana.

Mas como se vem percebendo, visão e estratégia de desenvolvimento a longo prazo para o concelho, é coisa que não se vislumbra. O exemplo da área da antiga Fábrica Brandão Gomes. Anos a fio ao abandono, a pensar o que fazer, a mexer aqui e ali, resultando numa manta de retalhos com intervenções pontuais e casuísticas. Agora, parte dos terrenos servem de muleta para equilibrar o orçamento municipal, através da consagração de uma receita proveniente de uma eventual venda desses terrenos. Ora, se a Câmara sabe verdadeiramente o que vai fazer, e não quer vender os terrenos, anda mal, em termos financeiros, a socorrer-se de um subterfúgio inscrevendo uma receita que sabe à partida que não a vai ter. Se a Câmara pretende vender os terrenos, anda igualmente mal porque confirma que não tem nem é mobilizadora de uma intervenção qualificadora de conjunto. No caso de a Câmara vender os terrenos e tiver em mente determinada intervenção que ainda se desconhece, enquadrada numa espécie de agenda oculta, então é duplamente grave.

Importa também endereçar alguns apontamentos críticos a certas intervenções durante a Assembleia, às quais não se pode de modo algum ficar alheio.

Certo vogal veio a terreiro defender a obra do timoneiro, sustentando a sua defesa em referências às características hidrográficas e hidrogeológicas em presença, falando no desenvolvimento, no sub-solo, de bacias hidrográficas, quando devia querer falar em aquíferos, lençóis freáticos, níveis freáticos ou superfícies piezométricas, ou até querendo referir-se às características de percolação e de permeabilidade. Para avalizar a sua opinião, exprimiu um princípio válido, segundo o qual, como arquitecto, e urbanista, não iria defender a alteração de linhas de água. Aqui ocorre em dois equívocos. Primeiro, a referência à formação e à actividade profissional para valorizar a sua opinião não pode ser totalmente considerada como avalizadora da mesma, uma vez que é claro que o vogal socorre-se de um princípio para sustentar uma opinião política já tomada, e não toma a opinião política baseada no princípio que refere. Segundo, se o vogal admite como válido aquele princípio, como arquitecto, também não devia admitir intervenções prejudiciais do ponto de vista do desenho urbano e da criação de barreiras urbanísticas. Mais a mais, em urbanismo é como na culinária: tem que ser q.b. Finalmente, num provincianismo considerável, defende que o túnel é uma forma de colocar Espinho no mapa, pois passará a contar com o maior túnel ferroviário do país! Sr. vogal, eu defendo um túnel ainda mais longo! Devia era estar de acordo comigo! Seguindo o seu raciocínio, eu coloco ainda mais Espinho no mapa! Sabe que em Viseu bateram o record do Guiness do maior pão com chouriço do mundo? Mas logo a seguir em Vagos fizeram um pão com chouriço ainda maior e ficaram com o record! É melhor prevenir que remediar! Temos de impedir que alguém venha a seguir e faça um túnel ferroviário ainda maior!?

Um outro vogal, veio ‘relembrar’ que a obra não era da Câmara, era da REFER. E questionava-se se a REFER teria de fornecer a informação sobre o projecto. Ao que ele próprio respondeu: era o que faltava! E acrescentou: era o que mais faltava se agora fossemos às empresas pedir informações sobre elas!
A Câmara e a REFER assinaram um protocolo visando levar a cabo o projecto em debate. Este é um projecto conjunto, e é óbvio que a Câmara tem um papel importante, e tem de responder por isso. Ainda que haja total separação e autonomia no que a cada instituição ficou atribuído executar, a Câmara poderá não ter obrigação formal, mas tem obrigação moral e política de zelar pelos melhores interesses dos seus munícipes e de interceder junto da REFER, e de outras instituições julgadas necessárias, já para não falar que a obra decorre em território do Concelho de Espinho. Já quanto ao acesso à informação, o sr. vogal não deve estar a viver no tempo em que está! Então a Constituição Portuguesa não prevê o direito de acesso a documentos administrativos (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, Lei 65/93, de 26 de Agosto, alterada pelas Leis 8/95, de 29 de Março, e 94/99, de 16 de Julho) e o direito de acesso à informação procedimental (Código do Procedimento Administrativo, DL 32/91, de 20 de Julho, alterado pelo DL 34/95, de 18 de Agosto)? No âmbito dos documentos administrativos, inscrevem-se as instruções, processos, relatórios, dossiers, pareceres, actas, autos, ordens de serviço, estudos e estatísticas, em quaisquer suportes (gráfico, sonoro, visual ou informático). São abrangidos por este regime os órgãos do Estado com funções administrativas e as entidades que, embora sejam formalmente privadas, exerçam poderes de autoridade, incluindo a REFER. Mesmo na actividade exclusivamente privada existem regulamentações que obrigam à publicitação de várias informações. Está tudo explicado. Com atitudes ditatoriais dessas, não é preciso demonstrar mais nada sobre a verdadeira postura neste processo: é o quero, posso e mando! É caso para dizer: era o que faltava!

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